São Paulo é fruto dos sonhos. Para cá vieram muitos em busca
de uma vida melhor. Há mais de um século, ferrovias ligaram o interior à
capital, para o trem seguir até o porto de Santos, exportando café e trazendo a
riqueza de alguns barões da cidade. São Paulo crescia. Décadas mais tarde,
sonharam alguns com uma cidade maior, mais moderna, mais rica. Rios foram
retificados, canalizados, escondidos. Córregos sumiram pra debaixo das ruas e
foram esquecidos. Lembrados apenas durante as enchentes, no movimento natural de
suas águas. Mas em horas como essas, poucos sem lembram disso.
E o sonho da cidade maior tomou os espaços. As ruas cortavam
as chácaras, as obras tomavam as ruas, projetos foram implantados e a cidade
mudou. Na luta pela terra urbana, as ruas foram invadidas pelos carros, símbolo
de poder e de status. O modelo importado do sonho americano tornou-se o
pesadelo dos bondes e o coletivo foi perdendo lugar para o transporte
individual. Elétrico, não poluente, o bonde deu lugar ao automóvel poluidor. Mas
num tempo em que fazer fumaça com cigarro era atraente e glamoroso como no
cinema holiudiano, os carros e seus escapamentos não eram vistos como vilões. Pelos
cinemas de rua, que existiam em muitos bairros, chegavam vilões e mocinhos com novidades
da moda, da cultura, do mundo. Sonhavam as mulheres com seus galãs preferidos, joias,
penteados, vestidos. Sonhavam os homens com suas musas provocantes.
Para o sonho ficar ainda melhor, JK decidiu que a indústria
do automóvel deveria vir aqui para ficar. E ela veio. E ficou. Trouxe com ela o
tal progresso, o emprego, o crescimento econômico. Mas como sonhos não são
necessariamente planejamentos minuciosos, para muitos se tornou pesadelo. O
operário produzia carros, mas não tinha onde morar. Acordando cedo, sem sonho,
trabalhadores construíam pontes, viadutos, túneis e rodovias.
E por falta de
tempo pra sonhar, foram morar nas favelas que cresciam dentro, ou junto da
cidade. O motorista sonhava com largas avenidas para trafegar. E ruas foram alargadas,
asfaltadas, impermeabilizando a cidade, sobrecarregando os poucos rios cujos
leitos restaram de papo pro ar. Espaços
verdes sumiam em nome do progresso viário. Aquelas linhas de bonde ficaram definitivamente
pra trás. Fáceis de serem implantadas, fáceis de serem desativadas.
Tempos depois a população precisava chegar em casa mais
rápido, pois foi morando cada vez mais longe do centro. Por crescer sempre e sempre
desordenadamente, São Paulo sonhou com um trem subterrâneo. E o sonho tornou-se
real, lentamente. Tão lento quanto a incompetência de vários governos que ainda
correm atrás, ou fingem que correm, da tão sonhada mobilidade urbana. E o
bonde, tão mais barato de se fazer e operar nem sonha voltar pra cidade...
A cidade de hoje ainda sonha, e muito. Mas quem vive de
sonho não enche a barriga. E entre a fantasia e a realidade, homens de negócios
preferem a segunda opção. Construtores, incorporadores, engenheiros,
arquitetos, demolidores não precisam mais sonhar. Acharam o homem de seus
sonhos, e fizeram-no prefeito. Perfeito, bem fuleiro, conivente, ladino,
irresponsável, na medida certa de seus devaneios. E bem acordados, constroem a
cidade que sonharam. Uma cidade toda deles. Enriquecem assim, às custas da
gente. Pagamos cada centavo desse pesadelo que se tornou a cidade. Pagamos no
trânsito parado, ou violento. Pagamos morrendo na poluição, na falta de verde. Na
falta recorrente de segurança, debaixo da sombra do prédio irregular que a
corrupção permitiu subir sobre nossas cabeças. Pagamos pela falta de educação,
democracia, cidadania, inteligência. E o sonho da casa própria, mola propulsora
de muita insanidade econômica, alimenta a máquina da perversidade urbana. Favelas
não se urbanizam mais, se incendeiam. Jornais, lacaios da propaganda
imobiliária, se calam. E lucram também. Os bairros centrais, saturados, não
suportam mais prédios, porém mais prédios são construídos. Um novo edifício que
sobe ao lado de sua casa, acaba com seu sono, com seu bairro, com sua história.
Se trocassem parte desses sonhos egoístas por planejamento de verdade para
todos, a cidade teria uma realidade bem diferente. Está mais do que na hora de
realizarmos a cidade que sonhamos. Humana, saudável, democrática, bonita,
segura. Sem a selvageria do mercado imobiliário, dessa fúria predatória que
esta arrasando uma enorme cidade.
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